Sem respirar

ontem antes que o cansaço fechasse as cortinas da minha mente e me levasse como passageiro na viajem do sono sem sonhos eu rezei as orações que conhecia e como sou um ser humano limitado e falível e desprezível pedi de forma egoísta que meu Deus atendesse desejos materiais porque sou jovem saudável e feliz por isso pouco ou nenhum interesse tenho na espiritualidade só preciso de dinheiro para pagar contas de coisas que nem uso esquecidas que estão em um canto qualquer de um lugar que não visito porque vivo viajando e quando posso ir pra casa prefiro ficar pelas ruas porque assim é a natureza de um animal selvagem com fome e sede de sangue que caminha de noite e se esconde do sol nascente junto com seus fantasmas em uma tumba escura e úmida e fria guardando seu segredo por todos os tempos mesmo que para isso seja sentenciado ao pior dos castigos sendo o maior deles a solidão de si mesmo ainda que não seja solitário tampouco excluído apenas um pouco do avesso e com certa predisposição a nadar contra a corrente e questionar o meio em que morre um pouco a cada dia principalmente em dia de domingo e feriado e dia santo quando nada tenho pra fazer a não ser sentar no banco da praça e pensar no que escrever para contar através das musicas as mesmas estórias com palavras diferentes e ainda fazer as pessoas sentirem algo porque preciso do reconhecimento de quem me ouve e não posso negar aos que amo a segurança de que mesmo faltando um pedaço ainda posso estar a frente e abrir o caminho que não conheço cego e surdo e mudo que sou indecente e individualista e um tanto quanto centralizador e capitalista e segundo alguns um mercenário frio e calculista e o mais engraçado é que hoje me dei conta de que não tenho nada de novo pra ler e eu odeio quando isso acontece porque tenho um tipo de fobia que convencionei chamar de síndrome da depressão em função da ausência da palavra impressa tanto é que um dia num hotel numa cidade do Pará eu juntei selos de edredom caixas de sabonete e vidros de xampú e até uma bula de remédio porque no criado mudo não tinha o escrito dos mórmons com o manual da igreja de Jesus cristo dos santos dos últimos dias nem o novo ou o velho testamento nada além do calor e dos mosquitos e eu tive que ler aquilo porque sou homem doente e a ausência da palavra impressa me deixa de olhos vítreos e nascem presas no lugar dos dentes e crescem pêlos e garras e perco a voz e saio grunhindo pela madrugada de telhado em telhado e ninguém sai de casa porque todos tem medo do homem que não tem o que ler perigoso que é ser contrariado e confundido com um ladrão na noite mas nunca roubei nada de uma mulher além de alguns sorrisos e gemidos e talvez uma lágrima de saudade e tristeza por ver desfeito o ideal de homem perfeito como se fosse meu o defeito de mentir e fugir do que sou como quem tem medo de lobisomem mais homem do que bicho e ainda por cima ter que fazer rima e ser alvo da maledicência dos invejosos e gostar da pessoa errada ser chamado de drogado por não ter me alimentado ficar até doente e cego e louco inconseqüente e olhar para si mesmo e ver que vagou por muito a esmo e esqueceu agora o caminho de casa e pensou na sua sina parou até de fazer rima e foi bater na porta que ficou aberta então entrou mas não achou nada de seu e perguntou de olhos molhados em que cidade fez a igreja a casa o quarto a cama onde ardem os sonhos que hoje são os pesadelos de quem perdeu o rumo em um dia de dezembro de um ano que nem sei mais e ontem antes que o cansaço fechasse as cortinas da minha mente e me levasse como passageiro na viajem do sono sem sonhos eu rezei as orações que conhecia e pensei em tudo que morreu e que descanse em paz

ponto final